O “calabouço” onde empobrecidos, decadentes, humilhados, os
Soubirous tinham encontrado refúgio, era sem dúvida o mais sórdido reduto da
antiga cadeia local. Uma das janelas do calabouço apresentava ainda grades de
ferro e era preciso evitar abri-la, pois da área para a qual dava, subia o
cheiro do esterco que o proprietário ali deixava curtir. Nesse cubículo de teto
baixo, paredes enegrecidas, chão de Lages gastas, instalaram os Soubirous como
puderam o que lhes restava de mobília, sequer mesa tinham. “Quantas vezes –
contou Jeanne Abadie, amiga de Bernadette – “eu a encontrei tomando a sua pobre
tigela de sopa a beirada da janela, diante do monte de estrume!”
E isso quando havia sopa! Acontecia faltar até o pão, porque
o pai, que se empregava por dia, na cidade, não encontrara serviço; porque a
mãe, não tivera roupa para lavar, nem chamados para arrumação de casas.
Bernadette, no entanto, segue pontualmente o catecismo do Padre Pomian, capelão
do Asilo onde as irmãs de caridade têm também uma escola, porém as palavras do
livro não lhe ficam na memória, têm muita dificuldade pois falava em dialeto
próprio de sua região. Ignorante, pobre, é ela por certo a mais deserdada das
meninas de Lourdes.
Eis no seu quadro de miséria, a heroína sobre a qual, por
desígnio incomparável, o Céu fixou a sua escolha.
2ª PARTE
A PRIMEIRA APARIÇÃO
A PRIMEIRA APARIÇÃO
Na manhã da quinta-feira 11 de fevereiro de 1885, Luisa
Soubirous verifica que falta lenha para o fogão. Bernadette, sua irmã Toinette
e Jeanne Abadie, uma vizinha de doze anos, vão juntas buscar gravetos na
floresta. Se possível, procurarão apanhar também alguns ossos que possam
vender, para comprar pão. Mas o que haverá para lá daqueles rochedos banhados
pelo canal, chamado de “Massabielle” (massa velha)?
Ao pé de Massabielle, cavou-se uma gruta natural, à qual as
enchentes do Gave trouxeram monetes de areia e gravetos. À direita dessa gruta,
abre-se no rochedo uma cavidade de forma oval, de onde caem os ramos de um pé
de eglantina (roseira silvestre). Mas para chegar até lá é preciso atravessar o
canal. A água parada ali existente não pode ser transposta de um salto. Jeanne
e Toinette tiram os tamancos, jogam-nos à outra margem, entram com os pés
descalços na água gelada e passam para o outro lado, Bernadette com receio da
água gelada, pelo mal que sofre hesita atravessar, mas com medo de ficar ali
sozinha, decide afinal a retirar a primeira meia quando escuta um rumor de
vento.
A menina mergulha o pé na água e ouve mais uma vez o mesmo
ruído e olha então para o lado da gruta e segundo as palavras da própria
Bernadette que mais tarde descreveria assim: “Logo após, na abertura do
rochedo, vi uma jovem toda branca, pouco mais alta do que eu, que me
cumprimentou com ligeira inclinação de cabeça. Ao mesmo tempo, afastou um pouco
do corpo seus braços estendidos, abrindo as mãos, como a Santa Virgem. No seu
braço direito, pendia um rosário. Tive medo, recuei, quis chamar as duas
pequenas, mas não tive coragem, sendo que por diversas vezes, esfreguei os
olhos, pensando estar enganada.
“Levantando de novo o olhar, vi a jovem que me sorria
graciosamente e parecia convidar-me a chegar mais perto. Mas eu ainda tinha
medo. Não era porém, um medo como eu tinha sentido em outras ocasiões, pois
teria ficado sempre ali parada, a olhar “aquero” – aquela lá! Sendo que quando
a gente tem medo mesmo, vai embora depressa. Veio-me então a ideia de rezar.
Pus a mão no bolso, tirei o terço que trago habitualmente comigo, ajoelhei-me e
quis fazer o sinal da cruz, mas não pude levar a mão a testa: ela caiu-me.
“A jovem, no entanto, colocou-se de lado e virou-se para mim.
Desta vez ela segurava o seu grande terço na mão. Persignou-me como para rezar.
Minha mão tremia. Experimentei fazer de novo o sinal da cruz e consegui. Depois
disso não tive mais medo. Comecei a rezar o terço. A jovem senhora fazia deslizar
as contas do seu, entre os dedos, mas não mexia os lábios. Enquanto eu rezava,
olhava-a o mais que podia.
“Ela usava um vestido branco, que chegava até os pés, dos
quais só aparecia a ponta. O vestido era fechado rente ao pescoço por um
franzido do qual pendia um cordão. Um véu branco cobria-lhe a cabeça e descia
pelos ombros e pelos braços até quase à barra do vestido. Sobre cada um dos
pés, vi uma rosa amarela. A faixa do vestido era azul e caia até abaixo dos
joelhos. A corrente do terço era amarela, as contas brancas, grandes e muito
distantes umas das outras. Quando terminei ela cumprimentou-me sorrindo, depois
recuou dentro do nicho e desapareceu de repente”.
Quando depois de um quarto de hora, Toinette e Jeanne Abadie
voltaram para Massabielle, cada uma com seu feixe de lenha, viram Bernadette do
outro lado do canal, de joelhos, em êxtase, imóvel, com olhos bem abertos,
“branca como se estivesse morta” e de repente voltou a ficar como antes.
No trajeto de volta, Bernadette não se contém e narra a
Toinette o que lhe acontecera e quando chegam ao calabouço esta conta
imediatamente a mãe, ao que esta já acredita tratar-se de alguma alma penada de
algum parente que encontrava-se no purgatório e pede-lhes que rezem.
A Gruta de Massabielle em 1858
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