Santas Perpétua e Felicidade
«As Raízes da Mística Cristã»
Olivier Clement
Tradução de Jandira S. Pimentel
Martírio: Morte e Ressurreição
Martírio significa testemunho, mas testemunhar Cristo a ponto de morrer é
tornar-se um com aquele que tornou a viver. O martírio cristão é uma
experiência mística, a primeira atestada na história da Igreja. Ela é
registrada bem no início pelo exemplo de Estevão, o protomártir nos Atos
do Apóstolos a saber: "(Estevão) cheio do Espírito Santo, olhou para os
céus e viu a glória de Deus, e Jesus de pé à direita de Deus; e ele
disse: 'vejo os céus abertos. E o Filho do Homem de pé à direita de
Deus'. Em seguida eles o jogaram fora da cidade e o apedrejaram;
enquanto o apedrejavam, ele rezava, 'Senhor Jesus, receba meu espírito'.
E se ajoelhou e clamou em alta voz, 'Senhor, perdoai-lhes'. E enquanto
dizia isto, ele adormeceu (Atos, 7, 55-60)". Visão da glória, rezar
pelos executores. Quando a história completa seu ciclo e outra
testemunha é levada à morte, esta mesma morte 'abre os céus' e permite
que as energias do amor façam sua entrada no mundo.
O martírio foi a primeira forma de santidade a
ser venerada na Igreja. E quando não houve mais mártires no sangue,
mártires na ascese, vieram os monges por sua vez. Foram os monges que
cunharam o dito que expressa o significado do martírio: 'dê seu sangue e
receba o Espírito'. O martírio retorna.
Um mártir pode ser, à primeira vista,
qualquer homem ou mulher. Mas quando eles são esmagados pelo sofrimento
eles são identificados com o Cristo Crucificado, e o poder da
ressurreição toma posse deles. Em relatos diretos compostos naquele
tempo, sem embelezamento, no início do terceiro século, vemos uma jovem
mulher cristã na prisão, gemendo dar à luz seu bebê (se uma mulher
grávida fosse presa ela não era enviada para a morte senão depois do
parto). O guardião caçoa dela. Mas Felicidade gentilmente explica a ele
que no momento do martírio outro irá sofrer por ela. Sua amiga Perpétua
na verdade nada sente quando é entregue aos touros selvagens. Ela é
momentaneamente poupada antes de sair do êxtase do Espírito, como se
acordasse de um profundo sono. E as mártires, antes de enfrentarem a
morte juntas, trocam um beijo de paz, como durante a liturgia
eucarística.
Para o cristão autêntico a morte não existe. Ele se lança no Cristo Ressuscitado. Nele a morte é uma celebração da vida.
Felicidade estava grávida de oito meses
quando foi presa. As dores do parto a acometem. Ela sofria muito e
gemia. Um dos guardiões disse a ela, 'se você já está chorando assim,
que será de você quando for atirada às feras selvagens?' Felicidade
respondeu a ele, 'Então haverá outro dentro de mim que sofrerá por mim
porque é por causa dele que estou sofrendo'.
Perpétua foi jogada ao ar primeiro (por um
touro furioso). Ela caiu de costas. Assim que pode se sentar, ela
prendeu os cabelos que haviam se soltado. Um mártir não pode morrer com
os cabelos desalinhados, para não parecer que estivesse pesarosa no dia
de sua glória. Então se levantou e notou Felicidade que parecia ter
caído. Ela foi até ela, deu-lhe a mão e ajudou-a a levantar-se. Quando
viram as duas de pé, a crueldade da multidão diminuiu. As mártires foram
levadas para fora pelo portão dos Vivos.
Lá, Perpétua foi recebida por um catecúmeno,
Rusticus, que era muito afeiçoado a ela. Ela parecia acordar de um sono
profundo, tão longo havia sido o êxtase dela. Ela olhou em volta e
perguntou: 'Quando seremos entregues ao touro? Quando lhe foi dito que
isso já tinha ocorrido ela não pode acreditar e recusou-se a aceitar a
evidência, até que viu em suas vestes e em seu corpo os traços da
provação. Então ela chamou seu irmão e o catecúmeno. Disse a eles:
'Permaneçam firmes na fé. Amem-se uns aos outros. Não deixem nossos
sofrimentos serem objeto de escândalo para vocês'.
O povo exigiu que as duas mesmo feridas,
fossem trazidas de volta para a arena para que pudessem apreciar o
espetáculo da espada perfurando seus corpos vivos. As mártires foram ao
local que a multidão exigia. Deram-se o beijo da paz para consumar seu
martírio, de acordo com o rito da fé. Permaneceram imóveis para receber o
golpe fatal. (O Martírio de Felicidade e Perpétua, no ano 203, em
Cartago, ed. Knopf-Kruger, p. 35-44.)
O sangue dos mártires é identificado com
aquele do Gólgota, e também com o da Eucaristia, que comunica o inebriar
da eternidade. O mártir se torna Eucaristia, se torna Cristo. E daí
porque as relíquias dos mártires, consideradas como fragmentos do cosmos
glorificado, do mundo por vir, são guardadas como relíquias nos altares
nos quais a Eucaristia é celebrada.
Os sonhos seguintes, que são visões, mostram
as almas dos mártires tomando parte na liturgia celeste como é descrito
no Apocalipse. Os jardins do paraíso com as folhas e as árvores cantando
sob a brisa do Espírito; um templo ou um palácio com paredes de luz; no
centro de tudo isto, o Ancião de muitos dias, cabelos brancos mas a
face irradiando juventude; a face de Cristo em sua juventude do
Espírito; o beijo da paz; o bocado de alimento oferecido pelo Pastor; o
perfume inefável como alimento; tantos símbolos do martírio como estado
místico, similar à atual experiência da Eucaristia.
Visão de Perpétua
"Então me levantei. Vi um jardim imenso. No
meio havia um homem alto vestido como pastor. Estava ocupado em tirar
leite das ovelhas. Em volta dele, aos milhares, homens vestidos de
branco. Ele levantou a cabeça, olhou para mim e disse: 'Bem-vinda minha
filha.' Ele chamou-me e deu-me um bocado de queijo que havia preparado;
eu recebi isso com as mãos juntas. Comi e todos disseram 'Amém'. Ao som
das vozes acordei, sentindo o sabor de uma estranha doçura em minha
boca. Contei logo esta visão para meu irmão (Saturus) e compreendemos
que o martírio nos aguardava."
A Visão de Saturus
"Nosso martírio havia terminado. Deixamos
nossos corpos para trás. Quatro anjos nos carregaram para o Oriente mas
suas mãos não nos tocavam. Quando havíamos passado através da primeira
esfera que envolve a terra, vimos uma grande luz. Então eu disse a
Perpétua que estava a meu lado: 'Eis aí o que o Senhor nos prometeu.'
Tínhamos alcançado uma planície vasta que parecia ser um jardim com
oleandros e todo tipo de flor. As árvores eram tão altas como ciprestes e
suas folhas cantavam sem cessar. Chegamos a um palácio cujas paredes
pareciam ser feitas de luz. Entramos e ouvimos um coro repetindo:
"Santo, Santo, Santo". No hall está sentado um homem vestido de branco.
Ele tem um rosto jovem e seu cabelo brilhava, branco como a neve. De
cada lado dele estão quatro homens de pé. Vamos em frente maravilhados e
beijamos o Senhor que nos acaricia com sua mão. Os anciãos dizem a nós
'Levantem-se'. Obedecemos e trocamos o beijo da paz. Reconhecemos muitos
irmãos, mártires como nós. Por alimento tínhamos todos um perfume
inefável que nos saciava plenamente." (Martírio de Felicidade e
Perpétua, Ed Knopf-Kruger)
Fontes:
http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/hagiografia/ss_perpetua_e_felicidade.html
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